Tradução e interpretação: inclusão de palavra em palavra – Parte 2

Caso ainda não tenha lido a primeira parte, acesse-a aqui.

Ainda no primeiro dia de palestras do congresso, após o coffee break, participei da mesa-redonda do Programa de Mentoria da Abrates, Caminho das Pedras, do qual orgulhosamente já fui coordenadora e ajudei a criar. O Programa de Mentoria foi idealizado pelo William Cassemiro, quando ainda era diretor da Abrates, e lançado em março de 2016. Hoje, o Comitê de Administração é composto pelos seguintes coordenadores: Carolina Ventura, Gisley Ferreira, Lidio Rodrigues e Sidney Barros Junior (não presente na mesa-redonda por motivo de força maior). Também fizeram parte da mesa um par de mentora (Ana Julia Perrotti-Garcia) e mentorada (Priscila Osório Côrtes), que contaram como foi sua experiência no programa, e a Monica Reis, que também ajudou a criar o programa.

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Mesa-redonda sobre o Programa de Mentoria da Abrates

O Programa de Mentoria é totalmente voluntário e gratuito, mas exclusivo para associados da Abrates. O programa já ajudou 55 mentorados desde sua criação. No momento, há nove pares em andamento. Os requisitos para ser mentorado são: ter até dois anos de experiência como tradutor/intérprete ou, caso não tenha experiência, estar cursando o último ano de um curso de letras/tradução/interpretação. Os requisitos para ser mentor são: ter pelo menos cinco anos de experiência como tradutor/intérprete. A duração de cada programa é de seis meses, e as reuniões são realizadas da melhor forma decidida entre o par de mentor e mentorado (presencialmente, Skype, e-mail, WhatsApp, etc.). As fichas de inscrição são analisadas por todos os membros do Comitê de Administração, que decidem em comum acordo se o candidato é qualificado ou não para o programa e, caso seja aprovado, quem é o mentor mais adequado ao perfil dele. Após essa decisão, o mentor recebe a ficha do possível mentorado e decide se concorda com a escolha ou não. Cada par é acompanhado por um coordenador (membro do Comitê de Administração). As metas a serem abordadas no programa são basicamente traçadas por cada mentorado com a ajuda do mentor. No entanto, é importante ressaltar que o programa não visa ensinar como traduzir, mas orientar sobre os aspectos práticos do mercado, que normalmente não são abordados pelos cursos da área.

A mentora Ana Julia Perrotti-Garcia já participou de três ciclos e relatou sua experiência: “Ganhei três grandes amigos e colegas de profissão”.

Para mais informações, acesse a página do programa no site da Abrates (link acima). Também há mais detalhes sobre o programa nesta publicação do blog.

Após o almoço, foi a vez da minha primeira apresentação, “Nem só de tradução vive o tradutor: acabando com o endeusamento do trabalho em excesso”, sobre a qual falarei em uma publicação separada. Aguardem!

Em seguida, foi a vez de Mark Thompson, com a apresentação “Menos heavy, mais leve. Pense no leitor alvo!” Mark, cuja língua materna é o inglês, falou sobre versões de português para inglês feitas por tradutores não nativos. Segundo ele, os seguintes adjetivos, entre outros, são usados para descrever essas traduções: long-winded, verbose, wordy, prolix, repetitive. Como vez ou outra faço versões, gostei muito de algumas dicas e soluções que ele deu para alguns termos difíceis de serem traduzidos, como “elaborar” (draft, formulate, detail, write, outline, design, etc.), “destacar” (highlight, stress, mention, emphasize, underline, etc.) e “desembolso” (spending, spend, expenditure, etc.). Dica dele ao verter do português para o inglês: não reproduza o português religiosamente e evite repetições desnecessárias.

O sábado foi concluído com a apaixonante palestra da grande Alison Entrekin, tradutora literária do português para o inglês, “Oombarroom: a reconstrução de Grande Sertão em inglês”. Como o próprio nome da palestra diz, Alison está atualmente trabalhando em uma nova versão da grande obra de João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, para o inglês, com o apoio do Itaú Cultural. Australiana, Alison mora no Brasil há mais de 20 anos e nos deleita com um português perfeito: “É a primeira vez que falo para um público de tradutores”. Que honra! Segundo ela, além de ser um livro extenso, com cerca de 600 páginas, a densidade dele é ainda maior. Menciona Haroldo de Campos, que afirmou que traduzir Grande Sertão é um processo de transcriação no qual perde-se de um lado, mas ganha-se de outro, e no qual o grande protagonista é a língua. Quanto à sua imensa responsabilidade nesse longo projeto, Alison diz que “só” tem “que traduzir para um inglês universal e inexistente”. Baba de moça, não é? Tradutora de grandes obras da língua portuguesa, como Cidade de Deus, de Paulo Lins, Budapeste, de Chico Buarque, e Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, Entrekin conseguiu nos encantar com seu amor pela língua portuguesa e o carinho e atenção que dedica não só a Grande Sertão: Veredas como a todas as obras que traduz. Ela é capaz de despertar o amor pela literatura e pela tradução literária até nos menos interessados.

Dica: a Alison já fez parte da série de entrevistas Greatest Women in Translation deste blog. Leia aqui.

No domingo, último dia do congresso, minha primeira palestra do dia foi “Novas ferramentas de auxílio à tradução e sua performance”, por Marcelo Fassina. Marcelo começou afirmando que MT (tradução automática) não é mais tendência, já é a realidade. Os clientes de serviços de linguagem, provedores de tecnologia, linguistas (nós) e LSPs (Language Service Providers) precisam trabalhar em conjunto nessa nova realidade tecnológica, segundo Fassina. Precisamos começar a abraçar as novas tecnologias e nos especializar cada vez mais. Lugares para bons profissionais sempre existirão no mercado, e a alta especialização será o que diferenciará os tradutores das máquinas. Além de diversidade e inclusão, eis aqui outra palavra que ouvi muito em todo o congresso: “especialização”.

Em seguida, assisti à palestra do Reginaldo Francisco e do Roney Belhassof, “Tradução saindo da torneira?” Criadores do projeto Win-Win, os dois falaram sobre a evolução e as tendências do mercado de tradução. Achei extremamente interessante e relevante a menção que fizeram a uma declaração publicada no site do congresso de 2013 da TAUS (tradução livre minha): “A tradução está se tornando um serviço de utilidade pública, como eletricidade, internet e água, que são serviços de que precisamos no dia a dia, sem os quais nos sentiríamos perdidos. Esses serviços estão sempre disponíveis, inclusive em tempo real, se necessário.” Segundo Reginaldo e Roney, a tradução faz parte do processo de construção cultural e linguística da humanidade.

Ainda não conhece o projeto Win-Win? Acesse o site (link acima) e saiba mais sobre essa iniciativa de democratização da tradução.

Infelizmente, tive que sair da apresentação dessa dupla dinâmica antes do término, pois, em seguida, foi minha segunda apresentação do congresso, “Gerenciamento e curadoria de redes sociais para tradutores”, sobre a qual também falarei em outra publicação separada em breve. Aguardem!

Neste ano, o encerramento do congresso foi antecipado, pois o Brasil estreou na Copa do Mundo contra a Suíça na parte da tarde. No entanto, além de exibir o jogo em um local dedicado especialmente aos torcedores, a Abrates também ofereceu palestras breves, estilo TedTalks, durante o jogo para aqueles que não são fãs de futebol.

Assim como a abertura, o encerramento também foi inovador e inclusivo, com uma palestra apresentada em Libras (Língua Brasileira de Sinais) e interpretada em português e inglês! A professora Marianne Stumpf, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), deu um show de simpatia com a apresentação “Tradutores surdos: experiências em processos de tradução para Libras”. Fiquei impressionada com o tanto que a comunicação em Libras é bem mais rápida que a comunicação oral! Foi uma experiência incrível para sentirmos um pouco na pele como é ser surdo. Segundo a professora, a visibilidade do intérprete de Libras é maior que a do intérprete comum, tornando a estética e a vestimenta detalhes importantes, pois influenciam na interpretação. Ilustrando a diferença entre as línguas de sinais de diferentes países, Stumpf nos contou que, por exemplo, o sinal que fazemos com o dedo médio, que é uma ofensa aqui no Brasil, significa “férias” na língua internacional de sinais. O número total de alunos surdos no Brasil é de 5,7 milhões, desde a educação básica até cursos superiores.

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Marianne Stumpf. Crédito: Renato Beninatto.

Desde o congresso realizado em Belo Horizonte, em 2013 (que, aliás, foi o ano de criação deste blog), não perco uma edição. O congresso já teve um número recorde de participantes (quase 900, em 2015, em São Paulo), localizações diferentes (como a de Belo Horizonte), palestras memoráveis (abertura com Leandro Karnal, no ano passado, em São Paulo), mas essa edição foi linda! O William Cassemiro, que ocupou o cargo de presidente de 2016 a este ano, encerrou seu mandato e seu lindo trabalho na associação com chave de ouro. Deu um show de inclusão e lição de vida a todos nós com as palestras de abertura e de encerramento. A Abrates sempre é sinal de inovação. Foi a primeira a fornecer interpretação simultânea e de Libras em seus congressos. Agora inovou mais uma vez com dois palestrantes negros de abertura, um homem e uma mulher, e uma palestrante em Libras no encerramento. Tenho muito orgulho de ser membro de uma associação que se preocupa também com a humanidade, a diversidade e a inclusão.

Agora, quem assume o cargo de presidente por dois anos é o Ricardo Souza. E ele já disse que o próximo congresso, que será realizado no ano que vem (data a ser definida) em São Paulo, promete, pois, além de ser a 10ª edição, será o aniversário de 45 anos da Abrates. Mal posso esperar!

Não perca estes outros relatos:
O início, o fim e o e-mail, por Maíra Monteiro
Resumo do 1º dia do Congresso da ABRATES, por Rayza Ferreira (também há a 2ª e 3ª partes)
Diversidade e inclusão, pautas de toda profissão, por Carolina Walliter

Guest post: Sign language (in Portuguese)

Our guest today, Silvana Aguiar dos Santos, will talk about the education of sign language interpreters in Brazil.

Welcome, Silvana!

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Desafios e reflexões sobre a formação de intérpretes de Libras/português no Brasil

No Brasil, a presença de intérpretes de Libras/português tem sido cada vez mais frequente nos diversos espaços da sociedade. Essa visibilidade conquistada por esse profissional nos últimos anos é consequência, em grande parte, das políticas linguísticas adotadas pelo governo brasileiro em relação à Língua Brasileira de Sinais — Libras. Ações como sua inclusão como disciplina curricular dos cursos de licenciatura e de fonoaudiologia, a criação de cursos de licenciatura e bacharelado em Letras-Libras, bem como a inclusão de pessoas surdas no sistema regular de ensino, ou ainda a difusão de uma educação bilíngue para surdos, são alguns dos fatores que contribuíram para o aumento significativo de intérpretes de Libras/português no mercado de trabalho brasileiro.

Quando abordamos o percurso de formação vivenciado por esses intérpretes, é possível observar que estamos em uma fase de transição entre diferentes contextos sociais, assim como em uma fase de articulação desses profissionais com os Estudos da Tradução, por meio de ações de cunho político e acadêmico. Há uma nova configuração do trabalho desse profissional, que passa a atuar de forma cada vez mais frequente em espaços acadêmicos. Além disso, vários cursos surgiram ao longo das últimas décadas a fim de qualificar esses profissionais, como os cursos livres de curta duração oferecidos pelas associações de surdos e/ou pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) em parceria com universidades ou órgãos do governo.

Recentemente, o curso de Bacharelado em Letras-Libras iniciado no ano de 2008 pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com outras instituições, na modalidade de educação a distância, foi um dos marcos no percurso de formação dos intérpretes. O curso tem o objetivo de formar esses profissionais conforme preconiza o Decreto-Lei nº 5626/05, que regulamenta a lei de Libras 10.436/02. O foco principal de formação desse curso está voltado para o campo educacional, um espaço com grande demanda de trabalho, seja nas universidades públicas e/ou privadas, seja em escolas da rede estadual e municipal em nosso país.

Atualmente, o curso de Bacharelado em Letras-Libras é oferecido pela UFSC nas modalidades presencial e a distância. Além dessa instituição, destacamos a Universidade Federal de Goiás, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal do Espírito Santo, que oferecem turmas de Bacharelado em Letras-Libras ou Bacharelado em Tradução e Interpretação de Libras. Outras instituições estão em fase de implantação do curso de graduação para formação de tradutores e intérpretes de língua de sinais. E o mercado de trabalho diante desse cenário de ampliação do campo de atuação dos tradutores e intérpretes?

No Brasil, muitos contextos de conferência, por exemplo, demandam o serviço de interpretação de Libras/português, uma vez que a participação da comunidade surda tem aumentado consideravelmente em nossa sociedade, estreitando interfaces de campos teóricos que se estendem desde as ciências humanas até a área de ciências exatas e da terra. Por outro lado, o índice de atuação de intérpretes de Libras/português concentra-se de forma evidente no campo da interpretação comunitária, abrangendo desde os contextos de saúde e jurídicos até o contexto educacional, sendo este último um dos campos mais procurados por tais profissionais. Nesse sentido, algumas ações desencadeadas pelo governo federal têm contribuído para a presença significativa de intérpretes de Libras/português no campo educacional. Um exemplo disso é o capítulo IV do decreto 5626, que aborda o uso e a difusão da Libras e da língua portuguesa para o acesso das pessoas surdas à educação. Esse capítulo apresenta uma série de providências a serem tomadas pelas instituições, dentre elas a necessidade de prover o serviço de tradução e de interpretação de Libras/português nas escolas.

Além desses espaços, aos poucos têm sido implantadas em nosso país as centrais de interpretação de Libras, as quais objetivam garantir o atendimento de qualidade às pessoas surdas em seu acesso aos serviços públicos. Nesse sentido, contextos da área médica ou jurídica, pouco conhecidos e praticados por intérpretes de Libras/português, tornam-se cada vez mais parte do cotidiano desses profissionais.

Diante desse cenário, as oportunidades de trabalho para intérpretes de Libras/português têm aumentado consideravelmente, o que exige um profissional competente e qualificado para atender todas essas demandas. A formação desses profissionais, por meio de cursos de graduação específicos sobre tradução e interpretação, é ainda recente em nosso país. Por exemplo, uma das primeiras turmas de tradutores e intérpretes de Libras/português formada em curso de graduação — o Bacharelado em Letras-Libras promovido pela UFSC — foi em meados de 2012.

A formação especializada desses profissionais é urgente, a fim de se garantirem serviços de qualidade nos mais diversos setores públicos em nosso país. Para promover essa formação, é fundamental problematizar e traçar diretrizes sobre as competências necessárias para a atuação de um intérprete e para cada contexto de atuação. Nessa perspectiva da formação por competências aplicada a intérpretes de Libras/português, elementos como a articulação entre as competências profissional, estratégica, tradutória, linguística e outras que constituem os processos de interpretação são eixos importantes para nortear uma didática de ensino desses profissionais.

Para encerrar, associando a minha experiência pessoal enquanto intérprete de Libras/português e, nos últimos anos, como docente e pesquisadora em Estudos da Tradução e Interpretação de Libras, ratifico a premissa de que prática e pesquisa precisam estar conectadas, articuladas, entrelaçadas para que de fato a formação de intérpretes se efetive e seja profícua. Considerar as experiências empíricas como parte constituinte da formação desses profissionais em consonância com os aspectos conceituais e as interfaces dos Estudos da Tradução é um dos primeiros passos para que tenhamos subsídios consistentes no processo de formação de futuros profissionais conscientes e qualificados para o exercício de suas funções.

Thank you, Silvana, for accepting our invitation and kindly contributing to our blog. 🙂

About the author
SILVANA AGUIAR DOS SANTOSSilvana Aguiar dos Santos é professora adjunta no curso de Letras-Libras do Departamento de Artes e Libras, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina no campo de conhecimento: Estudos da Tradução e interpretação de Libras. Doutora em Estudos da Tradução e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), graduação em Educação Especial pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tem experiência na área de Estudos da Interpretação, Políticas da Tradução e profissionalização de intérpretes de língua de sinais no ensino superior. Atua como vice-líder do Grupo de Pesquisa em Interpretação e Tradução de Línguas de Sinais – InterTrads.