Estamos de volta com mais uma tradução. Hoje teremos outra tradução do inglês para o português do texto da convidada Silvia Dall’Onder, An inside view of Public Service Interpreting. Espero que gostem!
Tenham todos uma ótima semana!
Gostaria de compartilhar com vocês um pouco sobre a minha experiência de trabalhar como intérprete para o serviço público em Londres. Trabalhei nessa função por 14 anos antes de voltar para o Brasil em 2012. Geralmente, quando falo para as pessoas sobre meu trabalho, elas se surpreendem com o fato desse tipo de interpretação existir. A palavra intérprete, ao menos para leigos, sempre os direciona para o glamour de cabines de conferências ou reuniões diplomáticas. Isso está longe da realidade da Interpretação para o Serviço Público (PSI, na sigla em inglês), como vocês verão logo abaixo.
A profissão de PSI surgiu com a necessidade de inserir padrões profissionais em atividades que já existiam por muito tempo, como facilitar a comunicação entre duas ou mais pessoas que não falam um idioma comum. Isso é o que todos os intérpretes fazem, mas no caso dos PSIs, o cenário ou contexto é diferente.
Finalmente, os serviços públicos perceberam que o antigo sistema de aceitar um amigo ou parente de um paciente como intérprete para uma consulta com um médico, por exemplo, era muito informal e cheio de dificuldades. A competência linguística nunca era testada, a confidencialidade era comprometida e, regularmente, as pessoas iam a reuniões ou audiências judiciais sem falarem uma palavra de Inglês (e sem aquele amigo tão necessário). A Convenção dos Direitos Humanos estabeleceu que, no caso do sistema judicial criminal, cada acusado tem o direito de ouvir as acusações e o processo em tribunal em um idioma que compreenda. Londres é uma das cidades com a maior diversidade linguística do mundo, com mais de 250 idiomas falados. Isso dá uma ideia da dimensão do papel do PSI.
Então, quem eram meus clientes? Por um lado, médicos, assistentes sociais, oficiais jurídicos, juízes, enfermeiras (a lista continua) nativos da língua inglesa; e, por outro, qualquer pessoa que não falava inglês ou que tinha domínio limitado do idioma e precisava ter acesso a serviços públicos. No meu caso, pessoas que moravam em Londres vindas de países lusófonos (Angola, Portugal, Brasil e Moçambique). Então, no decorrer do meu trabalho, fui a delegacias, prisões, escolas, cortes e tribunais, e hospitais ao redor de Londres e além.
Como eu conseguia trabalho?
Até aqui, tudo bem, mas como isso funciona? Quem procurava o meu trabalho? Quem pagava por ele? O trabalho era alocado a intérpretes qualificados que estavam nas listas de intérpretes de vários departamentos locais. Eu morava na região nordeste de Londres. A prefeitura local tem um departamento de idiomas que lida com solicitações de intérpretes de prestadores de serviços da área, por exemplo, hospitais locais, departamento de serviço social, escolas etc. Os acordos eram geralmente feitos com antecedência, e poderia haver muitos serviços em diferentes locais no mesmo dia. O trabalho não era limitado a minha área. Registrei-me em outros serviços e, muitas vezes, viajava para outros bairros londrinos. O tempo de deslocamento em Londres é um fator a ser considerado, por isso, tentei limitar meu trabalho a áreas próximas. Também havia trabalhos de última hora, portanto, eu estava sempre de prontidão, caso houvesse uma emergência. O pagamento dos serviços linguísticos vinha do orçamento da prefeitura. Eu era paga pelo número de horas que trabalhava, incluindo o tempo de deslocamento.
National Register of Public Service Interpreting (NRPSI)
Outro ponto de referência para encontrar um intérprete é o registro nacional de intérpretes de serviços públicos (NRPSI, na sigla em inglês) (http://www.nrpsi.org.uk/). O NRPSI é uma organização independente que gerencia uma lista de intérpretes qualificados em idiomas diferentes. As delegacias, por exemplo, usam essa lista para chamar um intérprete quando precisam. Então, se prendem alguém que fala polonês, eles pegam a lista para procurar um intérprete de polonês que esteja mais perto da delegacia. O mesmo se aplica se eles precisarem entrevistar alguém que tenha testemunhado um crime. Como ninguém pode prever que horas um crime acontecerá, podemos ser chamados a qualquer hora do dia ou da noite. Os trabalhos nas delegacias são geralmente longos. Pode haver muita espera, enquanto os policiais lidam com todo o tipo de caso, esperam advogados (e intérpretes) chegarem para, então, conduzirem uma interrogação com a pessoa presa.
Tribunais também usam o NRPSI para chamar um intérprete. Isso é normalmente feito antes da audiência e, às vezes, mas nem sempre, nos informam o nome do cliente e o tipo de crime. Poucos detalhes sobre a audiência são revelados para preservar a confidencialidade. A falta de detalhes sempre me deixava muito ansiosa porque não era possível fazer nenhum tipo de pesquisa sobre o assunto. Um procedimento semelhante se aplicava quando escritórios de advocacia buscavam meus serviços. Eles normalmente marcavam visitas em prisões para verem seus clientes, levando-me como visitante. Passei pela maioria das prisões de Londres.
Qualificação e treinamento
A qualificação específica necessária para fazer parte do NRPSI e trabalhar como PSI é denominada Diploma em Interpretação para o Serviço Público (DPSI, na sigla em inglês).
Essa qualificação é credenciada pelo Chartered Institude of Linguists. O candidato participa de um curso de treinamento preparatório por um ano que envolve a prática de habilidades de interpretação exigidas pelo exame: interpretação consecutiva, tradução oral, interpretação sussurrada e tradução escrita. Todas as habilidades são testadas nos dois idiomas: inglês e outro, geralmente, a língua materna. Durante o curso, outras habilidades importantes são ensinadas, além das técnicas de interpretação mencionadas acima, como criação de glossários, terminologia e as habilidades profissionais necessárias para ser um intérprete de serviços públicos com ênfase em confidencialidade e imparcialidade. Recomendo o treinamento e exame do curso de DPSI para aqueles que desejam embarcar nessa carreira.
A realidade do dia a dia
Trabalhar como intérprete me deu uma perspectiva de muitas vidas e situações que acredito ser difícil descrever aqui. Também foi muito interessante estar em contato com tantos profissionais diferentes e ter uma visão geral das atividades de cada um deles. Arrependo-me muito de não ter mantido um diário de todos os casos complexos e interessantes que presenciei no meu ponto de vista “invisível” de intérprete. Muitas vezes, voltava para a casa com uma sensação de frustração por não ter sido capaz de fazer mais para ajudar o próximo. Foi uma experiência terrível ver um paciente estrangeiro em uma ala de saúde mental que não conseguia falar uma palavra de inglês. Frequentemente, os clientes estrangeiros não entendiam o porquê eu não poderia aconselhar ou conversar com eles em detalhes sobre a situação deles. É essencial se manter imparcial. Também vi como pessoas sozinhas vivem em um país estrangeiro, especialmente quando não falam a língua nativa. Há vários motivos pelos quais os clientes não falam inglês o suficiente. Na maioria dos casos, não é uma questão de escolha, mas de circunstâncias pessoais.
Havia inúmeros desafios. Um deles era me familiarizar com a terminologia de várias disciplinas, como direito e medicina. Familiarizei-me com muitos termos técnicos em inglês e português. Todos os dias, eu encontrava palavras que não conhecia. Às vezes, os assuntos mais triviais me desafiavam. Costumava ter pavor de usar o sistema imperial de medida. “A faca tinha mais ou menos nove polegadas de comprimento” e uma discussão se iniciava sobre o tamanho real da faca, e o tamanho da lâmina, e meu cliente só sabia descrevê-la em centímetros. Todas as conversões de medidas precisavam ser feitas rapidamente, especialmente em uma audiência.
Já faz dois anos desde a última vez que trabalhei como intérprete em Londres. Ao escrever para esse blog, uma série de memórias ressurgiu sobre uma aventura profissional da qual nunca me arrependi de iniciar. Espero que o que eu tenha compartilhado com vocês tenha aprofundado as curiosidades sobre a profissão e os direcione para uma nova carreira emocionante.
Translator’s bioAlessandra M. Silva é formada em Letras – Tradutor/Intérprete pela Unilago e em Jornalismo e Estudos de Mídia pela CMI – Dublin. Atuou como professora de idiomas por mais de nove anos no CCAA nas franquias de Santa Fé do Sul, São José do Rio Preto e São Paulo. Atualmente, trabalha com tradução e como consultora de moda de luxo. Também se interessa por Marketing Digital e Divulgação de Marcas. Reside na Irlanda desde março de 2008. Entre em contato com ela pelo LinkedIn.
Muito interessante. Sou intérprete, mas nunca tive conhecimento de como a interpretação funcionava em tal contexto. Muito bom.
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Fico feliz que tenha lido a publicação traduzida, Marina! 🙂 É bom saber que elas estão sendo realmente úteis para as pessoas.
Obrigada!
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