
Crédito: Editora Suma
O mundo sombrio de Stephen King
Desde 2013, minhas aventuras por esse mundo ganharam uma nova dimensão; no entanto, já o frequento há muitos anos, desde bem antes de pensar em ser tradutora. Quando ainda adolescente, descobri o autor por acaso, em um conto publicado na revista Speak Up, e mesmo aos 14 anos fiquei tão fascinada com a capacidade do autor de se aventurar pela natureza humana usando elementos de terror que simplesmente tive que descobrir mais.
Esse conto se chamava “The Boogeyman” e foi publicado no Brasil com o título “O fantasma”, parte da coletânea de contos Sombras da noite (tradução de Adriana Lisboa). Três décadas se passaram e eu ainda acho esse conto uma das coisas mais incríveis que ele escreveu. Tenho certeza de que há pessoas pensando: “Natureza humana? O cara é escritor de terror!” Mas essa foi uma das descobertas mais incríveis que eu fiz e que tenho certeza de que muita gente não fez por preconceito: o terror do King não é de medinho, sustos e sangue (embora alguns desses elementos costumem estar presentes nas histórias). Porque, afinal, o que realmente pode dar medo não é um fantasma, um monstro, um alienígena. A coisa mais assustadora que existe no mundo é o homem.
Em 2013, recebi a proposta de traduzir It – A coisa, que é uma das obras icônicas do autor. É um calhamaço de pouco mais de mil páginas que conta sobre o horror que assola uma cidadezinha do estado do Maine, nos Estados Unidos, e um grupo de sete crianças que se juntam pra combatê-lo, com trechos se revezando num intervalo de quase três décadas, quando as mesmas crianças, agora adultas, voltam à cidade para o embate final. Para os desavisados, para os que conhecem apenas a capa, para quem viu o trailer do filme, parece a história de um palhaço assassino. Mas It aborda horrores muito mais sombrios: homofobia, violência doméstica, abuso infantil, abandono, racismo, tantos desses horrores humanos dos quais a gente sempre ouve falar e que são sempre contemporâneos e familiares.
O trabalho hercúleo de traduzir um original com 450 mil palavras trouxe frutos; logo vieram outros livros do autor, que eu já admirava tanto e conhecia tão bem. Mas conhecia mesmo? A sensação que tive foi de que comecei a examinar Stephen King com uma lupa, em vez de apenas com meus olhos. Comecei a desbravar nuances, detalhes, recursos, e a conhecer o autor por um viés diferente. A conta até o momento é de 11 livros, um conto gratuito disponível online aqui e o prólogo e o epílogo nunca publicados anteriormente de O iluminado (tradução de Betty Ramos de Albuquerque), que saíram na edição pertencente à coleção Biblioteca Stephen King. O trabalho continua firme, pois o King não para: em 2019, teremos mais.
Curiosamente, quando comecei a leitura, láááá na adolescência, o que mais me fascinava era mesmo o terror puro e simples; meu eu adolescente queria descobrir como sentir medo, os monstros que poderiam tirar meu sono. (Spoiler: não deu certo, eu não sinto medo de monstros.) Acredito que se não houvesse esse outro lado mais profundo nos textos dele, eu teria deixado seus livros para trás, como deixei alguns outros autores; mas a questão da natureza humana é a que mais me fascina agora e é o que me prende quando trabalho em um livro como Outsider, por exemplo, em que um policial eficiente e prático é obrigado a enfrentar suas crenças quando se depara com um assassinato brutal e um assassino improvável, ou como Belas adormecidas, que trata do papel da mulher na sociedade por meio das estruturas habituais e conflitantes de comunidades pequenas (no caso, uma prisão feminina e uma cidade) que são recorrentes do King. A propósito, poucos constroem personagens como o King, e poucos os matam como ele.
Para quem gosta de ler, mas nunca se animou a enfrentar os calhamaços habituais do autor, seja pelo tamanho ou pelo tema, sugiro que experimente. Vale começar por um dos pequenos que fogem da linha terror, como Joyland, ou pelos livros de contos, como Bazar dos sonhos ruins ou o próprio Sombras da noite, que são um ótimo portão de entrada para entender como funciona a cabeça e o estilo dele. Ah, e uma última dica: não usem os filmes baseados nas obras como parâmetro para avaliar os livros, pois eles raramente abordam o viés humano dos personagens que encontramos nas histórias.
Enquanto o autor continuar escrevendo, espero continuar traduzindo seus livros, até o dia em que, quem sabe, os horrores humanos estejam mais próximos da ficção sobrenatural do que da realidade do nosso cotidiano.
Sobre a autora
Regiane Winarski é formada em Produção Editorial pela ECO-UFRJ e tradutora de inglês para português desde 2009. Especializada em tradução literária para editoras como Suma, DarkSide, Rocco, Intrínseca, Record e outras, com mais de cem livros publicados. Trabalha com uma ampla variedade de gêneros, como fantasia, suspense/horror e romances para adultos e jovens adultos, de autores como Stephen King, Rick Riordan e David Levithan. Tradutora do premiado livro de 2017 “O ódio que você semeia”, de Angie Thomas, publicado pela Galera Record.