Guest post: Os estudos de gênero e a tradução

Bem-vindos de volta a mais uma publicação convidada!

Hoje tenho o prazer de receber uma colega que faz um trabalho incrível e interessantíssimo com estudos de gênero. E é claro que eu não poderia deixar de convidá-la para escrever sobre isso aqui no blog, não é mesmo? Espero que gostem.

Seja bem-vinda, Graziele!

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Foto de Vanessa Serpas disponível em Unsplash

A tradução e os estudos de gênero: o papel político e cultural da linguagem

A questão de gênero tem sido um tema recorrente nos meios de comunicação em massa e mídias sociais recentemente. Temas como violência de gênero e feminicídio, assédio sexual, etc. cada vez mais ganham destaque e são alvos de muita discussão. A visita ao Brasil da filósofa norte-americana Judith Butler, referência no campo de estudos de gênero, é um exemplo dos impactos sociais deste debate. As acusações de pregação de uma suposta “ideologia de gênero”, dirigidas à filósofa, dão o tom de uma percepção moral que alguns setores da sociedade demonstram diante do debate de gênero. Partindo do princípio de que essa ideologia seria contrária a certos valores morais e tradicionais da família, esses setores, entre acusações e ameaças, causaram muita comoção e discussões calorosas sobre gênero. Mas afinal, o que é gênero e o que significa estudar gênero? E o que gênero tem a ver com tradução?

Os estudos de gênero nasceram muito próximos do movimento feminista nos Estados Unidos nos anos 1960, quando questões como o papel da mulher ganharam destaque. No entanto, é importante ressaltar que a questão de gênero não se restringe a feminino e masculino, mas também incorpora a transgressão de gênero, pessoas que não necessariamente se encaixam no binário mulher e homem. Portanto, ao tratar-se de problemáticas relacionadas a gênero, é fundamental ter em mente que ele não se restringe a questões relacionadas somente à mulher e ao homem.

O conceito gênero enquanto ferramenta analítica e de pesquisa amplia discussões relacionadas a política, cultura e sociedade no geral. Portanto, do ponto vista teórico, não se restringe a aspectos morais ou a opinião pessoal de pesquisadores e pesquisadoras. Ele parte do princípio de que gênero é uma construção social e, por isso, varia dependendo do contexto socioeconômico de cada sociedade. Sendo assim, a inserção de gênero enquanto categoria central da pesquisa abriu espaço para novas perguntas na produção acadêmica: como questões de feminidade e masculinidade são entendidas em cada sociedade? Como eles são perpetuados ao longo de gerações e quais as consequências? Como gênero, raça, classe, nacionalidade, religião, sexualidade, etc. se interseccionam? E como as configurações de poder são definidas nesse contexto? Como a globalização muda o entendimento e o significado de gênero?

Nesse sentido, a linguagem usada para responder a essas perguntas desempenha um papel extremamente crítico, ou seja, pode impactar, em alguma medida, as percepções que os sujeitos e grupos sociais naturalizam. Uma das questões mais proeminentes no campo é o uso de palavras neutras que rompam com o binário mulher e homem. Isso ocorre especialmente no caso de idiomas como o português, em que se costuma usar o gênero linguístico masculino para generalizar grupos. Essa escolha no atual contexto tem um significado político e cultural. Por muito tempo, a voz de grupos marginalizados na sociedade, como mulheres, homossexuais, negros, transgêneros, foi desconsiderada e/ou apagada da história, da ciência e da política. Por isso, existe um esforço de se repensar a linguagem e o que ela representa, dando espaço para que esses grupos escolham as palavras com as quais eles se identificam. Essa escolha, por mais simbólica que possa parecer, abre espaço para a discussão do significado e da escolha de determinado termo. Por exemplo, na minha dissertação do mestrado, eu escolhi usar a palavra “mulata” em vez de “mulato” ou ainda “mulatx/mulat@” quando eu me referia a essa categoria no geral, pois analisei diversas propagandas usadas para a promoção turística do Brasil, nas quais o corpo da mulher cisgênero foi usado extensivamente. Essa foi uma escolha pensada e que visou ressaltar e criticar a exploração de um grupo social específico nesse projeto.

A tradução desempenha um papel importante nesse contexto, impulsionada especialmente pelo transnacionalismo das instituições, sejam elas públicas e/ou privadas. Desse modo, e como já discutido muito na indústria, não basta apenas o conhecimento linguístico do idioma, mas também socioeconômico e cultural dos idiomas a serem traduzidos. Especialmente nas traduções de negócios, marketing e conteúdos sociais, localizar e adaptar o conteúdo para o público-alvo é um dos maiores desafios do tradutor de modo que o significado político da linguagem não seja ignorado. No campo da pesquisa, a tradução é fundamental para a realização de estudos envolvendo grupos sociais que não falam o mesmo idioma. Seja na coleta de dados ou na tradução de artigos científicos, a escolha dos termos usados deve ser pensada cuidadosamente, pois eles não necessariamente apresentam a mesma conotação, muitas vezes nem existindo em determinados contextos, podendo inclusive impactar o resultado de pesquisas científicas.

Por fim, o tradutor deve estar ciente de sua responsabilidade social, política e cultura na manutenção ou não de formas de pensamentos existentes. Pesquisar tem o potencial de evitar muitas dessas questões. Afinal, a tradução, assim como a linguagem, tem o poder de unir diferentes povos e abrir canais de comunicação antes não existentes.

Sobre a autora
picGraziele Grilo tem bacharelado em Ciências Políticas pela UNICAMP e acaba de concluir o mestrado em Estudos de Gênero pela Towson University (EUA). Sua dissertação foi na área de gênero, política, raça e turismo no Brasil. Também se interessa muito pela atual crise mundial de refugiados. Acaba de auxiliar na criação, além de participar ativamente, de um projeto com alunos de ensino médio refugiados da África e Oriente Médio, que visou utilizar as artes como meio de expressão e ativismo para esses alunos, em um contexto no qual o idioma pode ser barreira na comunicação. Atua como tradutora freelance desde 2012 nos idiomas português, inglês e espanhol. É torcedora do São Paulo Futebol Clube, ama Pearl Jam e se aventurar na cozinha.
Contato: trad.gragrilo@gmail.com
LinkedIn: Graziele Grilo

 

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