Só precisamos de oportunidade

Começo este texto já fazendo um pequeno disclaimer: sou negro de pele clara, adotado por uma família branca que sempre se esforçou para que não me faltasse nada e me deu todo o apoio necessário para eu crescer e me desenvolver pessoal e profissionalmente. Porém, nada disso impediu que eu também sentisse o preconceito na pele, se não no âmbito do trabalho, durante a vida e nas relações sociais, fossem elas breves ou duradouras. Com esse aviso dado, dou continuidade ao que venho falando em palestras, bate-papos e outros eventos para os quais fui convidado nos últimos anos para comentar, sempre do meu lugar de fala, a situação da comunidade tradutória negra no Brasil.

Escolhi o título deste texto breve, pois acredito com firmeza nessa frase como uma chave que pode reorientar nossa relação com a realidade precária de profissionais da tradução que se empenham para alcançar um lugar ao sol, mas que, por conta da cor da pele sentem muito mais dificuldade em avançar do que os demais profissionais que não enfrentam esse problema. E quando falo de oportunidade, não estou falando daquela que é oferecida quando o profissional já está formado e dando os primeiros passos. Falo de muito antes, da chance de ter uma educação de qualidade ­– direito de todos, não apenas das pessoas negras –, um lar acolhedor, apoio familiar, estrutura emocional não abalada pelos preconceitos que sofrem, enfim, uma série de situações que acabam determinando a trajetória de gente talentosa mas ferida no que há de mais importante, que é o orgulho de ser como é.

Tempos atrás, em uma quase brincadeira, pedi para que profissionais da tradução editorial que se identificassem como afrodescendentes respondessem a uma postagem no Twitter que fiz por ocasião do mês da consciência negra. Pedi também para que outros profissionais indicassem colegas que estivessem nessa categoria – que enxergassem em si as dores e as delícias da negritude. Na época, contei cinco profissionais. Em um ambiente com muitos profissionais atuantes em vários níveis. E, infelizmente, essa questão não muda muito quando se trata da tradução técnica. E esse cenário sistêmico é bastante preocupante, visto que trabalhamos com a diversidade e teríamos que defendê-la ao máximo, mas não é o que acontece.

Em muitos momentos já me perguntaram: “Você contrataria para um trabalho um profissional negro em detrimento de um profissional branco mais qualificado por conta da cor da pele de ambos?”. Já fui muito resoluto em dizer que não, de jeito nenhum, profissionalismo acima de tudo, e muitas pessoas devem estar fazendo que sim com a cabeça no momento da leitura desta frase. Porém, hoje talvez eu tenha uma visão um pouco diferente, pensando lá na frase que abriu esse texto. Só precisamos de oportunidades. E se eu enxergar um potencial naquela pessoa que está buscando uma oportunidade, ainda que possa me dar um pouco de trabalho no início, talvez eu hoje – e a ênfase no talvez é proposital, pois cada caso é um caso e toda decisão depende de um contexto – desse essa oportunidade para profissionais afrodescendentes que me mostrassem que valeria a pena o investimento. Talvez fosse uma maneira de eu trabalhar a igualdade desigual no meu microuniverso, ou seja, dar um pouco de protagonismo a quem nunca teve para que essa pessoa possa se aproximar de outros profissionais que alcançaram com mais facilidade o que ela, por tudo o que acontece no mundo, inclusive o preconceito, teve mais dificuldade de ter acesso.

E sinto já muitos narizes torcidos neste momento, pois a gente sempre pensa no que nos parece mais justo quando temos tantas justiças ao nosso lado. Porém, se pensarmos nas injustiças que os outros sofrem, muitas vezes por conta da cor de sua pele ou por qualquer outra circunstância que leva muitas pessoas às margens, talvez consigamos enxergar, mesmo que entre uma névoa de desconfiança, como uma oportunidade dessas pode mudar a vida de uma pessoa negra, enquanto para a pessoa branca poderia ser apenas mais um trabalho para o currículo. Acesso é muito importante, e está na hora de ele acontecer com mais frequência, está na hora de todos nós estendermos a mão e sermos mais solidários com quem realmente precisa. Em épocas de pandemia e à beira de um caos social e econômico, precisamos abraçar a todos, mas, principalmente, aqueles para quem a sociedade costuma virar as costas. Como fazer isso? Apoiando causas em que você acredita de verdade, mas não sem antes se aprofundar nelas, entender por que elas existem, entrar em contato direto com as militâncias e participantes. Apoiar iniciativas que podem dar oportunidade de entrada no mercado de trabalho para profissionais das minorias socioeconômicas, não necessariamente com dinheiro, mas também com tempo de monitoria, acompanhamento, treinamento e afins. E praticar a empatia o tempo todo, pois ela é importantíssima para qualquer profissional da tradução. A gente traduz o outro. E passa pelo exercício da alteridade entender o outro, abraçá-lo e trazê-lo para perto.

Petê Rissatti nasceu em São Paulo, no propício Dia Nacional do Livro. Bacharel em Tradução Inglês-Português pela UNIBERO e especialista em Tradução Alemão-Português pela USP, trabalha com textos desde 1998 e já atuou como revisor, gerente de projetos de tradução, preparador de textos e tradutor técnico, até se apaixonar pela tradução editorial. Tem mais de 80 livros traduzidos publicados, entre eles obras de Franz Kafka, George R. R. Martin, Stefan Zweig, John Scalzi, Friedrich Dürrenmatt, Samuel R. Delany, Felix Salten, Kurt Vonnegut Jr., Tomi Adeyemi e Veronica Roth. Também é professor de práticas de tradução literária e escrita em diversas universidades e cursos livres. Para mais informações, visite: http://peterissatti.com.br.

Tradução e interpretação: inclusão de palavra em palavra – Parte 1

Nesse último fim de semana, de 15 a 17 de junho, foi realizado o 9º Congresso Internacional de Tradução e Interpretação da Abrates (Associação Brasileira de Tradutores e Intérpretes), no Rio de Janeiro. A localização não poderia ser melhor: Rio Othon Palace, hotel em frente à praia de Copacabana, cuja beleza nem o tempo ruim foi capaz de diminuir.

Eu e minha grande amiga Carolina Ventura, supercompanheira de aventuras e de profissão, chegamos já na quinta-feira, pois queríamos aproveitar para descansar um pouco antes do congresso e aproveitar a cidade. O tempo, como eu já disse, não ajudou muito, mas conseguimos pelos menos ir à Confeitaria Colombo comer torrada Petrópolis e nos encantar com sua beleza.

Na sexta-feira, aproveitei a tarde para gravar alguns episódios para o podcast TradTalk que, aliás, voltará com a segunda temporada no mês de julho. Aguardem! Conversei com a Ana Julia Perrotti-Garcia; a Liz e a Pati, da Ideal Translation; e o Fabiano Cid, da Ccaps. Todos bate-papos deliciosos! Mal posso esperar para vocês ouvirem/assistirem.

Com o tema “Tradução e interpretação: inclusão de palavra em palavra”, os keynotes de abertura, Petê Rissatti e Rane Souza, mostraram que o tema da inclusão e da diversidade seria o foco do congresso. Como disse Roney Belhassof no Twitter, “É emocionante estar em um congresso com dois keynote speakers negros. Um homem e uma mulher.” Não deveria nos causar estranheza (boa, nesse caso), mas como disse o próprio Petê, embora estejamos em pleno 2018, infelizmente, ainda é necessário discutir alguns tópicos. Petê é negro, gay e candomblecista e fala com conhecimento de causa. Segundo ele, não temos o direito de dar nossa opinião sobre o lugar de fala alheio, mas podemos, sim, falar segundo o nosso ponto de vista, de forma empática. Concordo com ele quando diz que traduzir e interpretar são atos de empatia. Consequentemente, todo tradutor/intérprete precisa ser empático e entender o outro. E, para sermos empáticos, precisamos nos livrar dos preconceitos. Petê, tradutor literário, encerra sua emocionante fala exigindo respeito: “Não dá pra continuar do jeito que está. Nós temos pressa!”

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Petê Rissatti

Tanto no encerramento da fala do Petê quanto no início da fala de Rane Souza, também tradutora, Marielle Franco é mencionada. Rane, por sua vez, nos mostrou números e fatos da história negra no Brasil. Embora seja falado em minoria, 56% da população brasileira é negra/parda. Infelizmente, não há dados específicos sobre o mercado da tradução, mas no Jogo do Privilégio, proposto por ela, pudemos ver que não há representatividade. Entre os cerca de dez voluntários, apenas dois eram negros. O propósito do jogo, criado pelo Instituto Identidade do Brasil, é mostrar como a desigualdade racial afeta todos os aspectos da vida dos negros. A princípio, muita gente, inclusive eu, acreditou que o jogo não funcionaria; afinal de contas, quem estava lá, querendo ou não, teve uma realidade de vida diversa. No entanto, o jogo foi chocante e emocionou a nós todos. Uma coisa é ouvirmos falar sobre desigualdade racial; outra coisa é vermos ou sermos expostos, de alguma forma, às consequências dela. Por fim Rane nos disse: “Sou perseguida por policiais TODOS os dias em lojas e estabelecimentos comerciais!”

Assim como na hora, agora fiquei novamente sem ação (e com lágrimas nos olhos) após relembrar essa frase impactante. Eu, em toda a minha brancura, jamais saberei na pele o que é isso. No entanto, fico feliz em sentir, com ela, com o Petê, com a tragédia da Marielle Franco, com meus amigos. Ao chorar ouvindo relatos desse tipo, dou-me conta de que sou humana, que sinto as dores dos meus iguais, que respeito o lugar de fala alheio e só posso tentar entender, embora saiba que jamais serei capaz de saber de fato como é. Isso é um sinal de que estou no caminho certo e que é meu dever como ser humano ajudar meus iguais.

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Rane Souza

Fazendo uma ponte com a fala de abertura do William Cassemiro, presidente anterior da Abrates, Rane encerra ressaltando que precisamos estimular a profissionalização do nosso mercado em todos os sentidos, inclusive para os negros. O que podemos fazer? Observar nossas próprias práticas e aumentar a representatividade. O negro se sente mais à vontade sendo traduzido/interpretado por outro negro.

Após toda essa carga emocional e inclusiva da abertura, o primeiro dia de palestras começou, para mim, também com chave de ouro com a apresentação da Aline Tomasuolo, com o título “O método Starbucks aplicado ao mundo da tradução”. A Aline foi mentorada do Programa de Mentoria da Abrates, na época em que eu ainda era coordenadora, e me deixou impressionada com sua evolução profissional. Apresentação visualmente impecável, conteúdo extremamente relevante, detalhes que fizeram a diferença. Ela aplicou em sua apresentação e comprovou, com isso, que também aplica sua fala na prática: padronização de qualidade e personalização do atendimento. Aline disse que, segundo a Adobe, no futuro, as pessoas não comprarão mais produtos, mas experiências. Eu acredito que isso já seja verdade. Pense nos serviços que você usa, nos produtos que consome. A padronização e a personalização aumentam a valorização do mercado de tradução. Um cliente encantado resulta em fidelização e divulgação. Como tradutores, precisamos assumir nossa identidade. As palavras têm poder. Não “fazemos” tradução, somos tradutores! Além disso, devemos manter um canal de comunicação aberto e claro com os clientes, informando sobre disponibilidades/indisponibilidades, e descobrir a preferência de cada um deles. Com isso, nossa própria humanidade acaba sendo um diferencial nos serviços que prestamos no atual mundo tecnológico.

A segunda palestra à qual assisti foi “O método Harvard de negociação para tradutores e intérpretes”, por Claudio Pereira. Uma das principais dicas do Claudio foi que, em uma negociação, devemos focar no problema, não nas pessoas. Segundo ele, devemos ter critérios objetivos e diferentes opções. Precisamos entender o cliente, nos preparar e vender o serviço antes de informar o preço: mostrando os valores que serão agregados com ele. Devemos nos comunicar com segurança e passar segurança para o cliente, descobrir pontos em comum/conflitantes: o que o cliente sabe sobre nós e vice-versa é relevante em uma negociação. Devemos ser criativos e pensar em diferentes formas de satisfação mútua.

Como vocês podem ver, não cheguei nem na hora do almoço do primeiro dia ainda e já teve muita coisa legal! Como ainda tenho muita coisa interessante para passar para vocês, deixarei para uma segunda publicação, em breve, não se preocupem. Fiquem ligados!