Sejam muito bem-vindos de volta à nossa série de publicações de convidados após duas semanas de férias desta que vos fala. 🙂 Voltamos com um convidado ilustríssimo que quem participou do Congresso da Abrates, do PROFT e/ou da Semana do Tradutor do ano passado teve a oportunidade e a honra de conhecer pessoalmente, como eu. Quem for participar do Congresso da Abrates deste ano poderá (ou seria deverá?) prestigiá-lo mais ou uma vez ou conhecê-lo.
Bem-vindo, Israel!
A evolução da tradução e interpretação militar brasileira
Parte I (1933 – 2004)
No atual cenário internacional, o Brasil tem se projetado mais e mais, seja através de seus ímpares recursos naturais ou de seus profissionais altamente capacitados. Assim também têm feito nossas Forças Armadas que, por intermédio de profissionais cada vez mais especializados, têm buscado no domínio dos idiomas estrangeiros a mais adequada e estratégica forma de destaque no âmbito das relações internacionais. Surge, então, no seio do Exército Brasileiro a figura do militar que atuará como intérprete e tradutor militar.
Assim, diante das dificuldades de comunicação apresentadas no teatro de operações, tornou-se imperativo o emprego de tradutores e intérpretes militares nestas operações militares. Entretanto, nota-se, ainda, um despreparo técnico na seleção e utilização deste, uma vez que deveria ser um profissional da linguagem com experiência sólida, formação adequada e aptidão para o exercício da arte de traduzir e interpretar em prol da paz mundial.
São dois os episódios que marcam o início da participação de militares brasileiros em iniciativas de organismos internacionais voltadas para manutenção da paz: a presença de um oficial da Marinha na Comissão da Liga das Nações que administrou a região de Letícia, entre 1933-1934, e de três oficiais, o Capitão-Tenente John Anderson Munro (Marinha), o Capitão Hervé Berlandez Pedrosa (Exército) e o Capitão-Aviador João Camarão Telles Ribeiro (Aeronáutica) na Comissão Especial das Nações Unidas para os Bálcãs (UNSCOB), que operou na Grécia, de 1947 a 1951. Estes três observadores militares atuavam apenas no lado grego da fronteira e eram acompanhados por um funcionário civil da Organização das Nações Unidas (ONU), oficiais de ligação gregos e um intérprete local.
Desde então, o Brasil participou de 27 missões de paz ou civis sob a égide da ONU e de missões estabelecidas pela Organização dos Estados Americanos (OEA), com observadores militares, policiais, peritos eleitorais, especialistas em saúde, tropas armadas, tradutores e intérpretes, como em Suez, na República Dominicana, Moçambique, Angola, Timor Leste e Haiti.
Quando a UNEF (1956-1966) foi criada e implantada no Oriente Médio e Faixa de Gaza, com a finalidade de intermediar o conflito árabe-israelense, e assim garantir a neutralidade e a paz na região conflituosa, a ONU houve por bem determinar que a língua oficial daquela missão de paz seria o inglês. Assim, esta se tornou a língua oficial de trabalho e de comunicação para todos os Contingentes e para todos os integrantes da UNEF.
O Brasil sabia que toda a comunicação para fora do Batalhão Suez, teria que ser na língua inglesa, mas nunca se apercebeu que deveria montar uma estratégia de ordem oficial, isto é, alguém que tivesse o pleno domínio e intercâmbio da língua estrangeira adotada na UNEF com os interesses do nosso Batalhão. Então, o Contingente Brasileiro valia-se tão somente de militares voluntários com a iniciativa de resolver a intercomunicação com as demais delegações da Missão e, em especial, nos assuntos administrativos junto ao QG da UNEF.
Enfim, aquela era uma falha que um dia deveria ser solucionada, pois a grande maioria do nosso pessoal, incluindo os Comandantes, não tinha o domínio do idioma inglês, e sempre se valiam de outro militar que, às vezes, era deslocado, às pressas, para resolver muitos dos problemas que tinham cunho oficial no QG da UNEF, em Gaza. A qualidade do serviço prestado, em muitas ocasiões, era, de certo modo, duvidosa, embora houvesse boa vontade dos envolvidos em resolver a questão. Surgiu, então, a ideia de se criar uma condição oficial, que pudesse bem representar o Brasil à altura das reais necessidades que se apresentavam à época.
Embora não se soubesse que a Missão se aproximava do final devido a Guerra dos Seis Dias que se avizinhava, a criação oficial da Seção de Intérprete no Batalhão Suez aconteceu no período do 18º Contingente, quando foi realizada uma reformulação da UNEF e o Brasil fora indicado para acumular uma nova missão. A Seção de Intérprete era uma necessidade bem antiga e acabou sendo instalada, graças à visão e participação do então oficial de logística do batalhão. Após sua implantação, não há como negar os méritos e os bons serviços prestados pela Seção de Intérpretes ao Batalhão Suez e à Missão de Paz da ONU no Oriente Médio.
No entanto, com o intuito de guarnecer a Seção de Intérpretes do Batalhão Suez, e com a devida aprovação da UNEF para designar três capitães para ocupar as funções, fez-se necessária a seleção de militares brasileiros naquele posto, que foram convidados a fazer um concurso no então Centro de Estudos da Linguagem, no Palácio Duque de Caxias (antigo Ministério da Guerra) no Rio de Janeiro. Esta seleção foi realizada por oficiais americanos da Comissão Militar Mista Brasil-EUA. Para tal, apresentaram-se quinze capitães, sendo escolhidos os três primeiros colocados. Assim, os integrantes da 1ª Seção de Intérpretes do III/2ºRI, Batalhão Suez foram o Cap Inf Walter Bazarov Cardoso Pinto, o Cap Art Werlon Coaracy de Roure e o Cap Inf Haroldo Carvalho Netto. Esse último trilhou uma carreira de sucesso com tradutor até o fim de seus dias, deixando inúmeros artigos e obras traduzidas publicadas.
Saltemos agora mais de 25 anos no tempo. Na missão em Moçambique, Operação das Nações Unidas em Moçambique – ONUMOZ, no ano de 1992, percebemos que o uso do intérprete militar retrocedeu, um pouco, em relação à experiência brasileira em Suez. Era no Comando Regional, em Beira, que ficava o único intérprete militar brasileiro; não porque tinha preparação para tal, mas porque era aquele que melhor podia se comunicar em inglês.
Já em 1994, na Missão das Nações Unidas para Verificação de Angola (UNAVEM), verificamos que naquela não houve a presença de intérpretes militares. Mais uma vez, como na ONUMOZ, a questão do intérprete fora relegada a segundo plano no contingente militar, apesar da falta de militares capazes de desempenhar funções que necessitassem de comunicação contínua e frequente em idioma estrangeiro. Esse foi mais um recorte no tempo e espaço que representa a notória era do “ei, você, que fala inglês, a partir de agora será meu intérprete!”. Ademais, os militares que eram “escolhidos” para serem os “ditos” intérpretes tinham que acumular outras funções de cunho admistrativo ou militar.
O Timor-Leste abrigou seis missões/intervenções sob a égide das Nações Unidas; entretanto, foi somente com o advento da INTERFET (1999-2000), que o Governo brasileiro, ouvido o Congresso Nacional, decidiu enviar um pelotão de 50 policiais do Exército e um oficial superior comandante do contingente brasileiro (CONTBRAS). Este contingente foi mobilizado em apenas uma semana, mediante a seleção de militares de uma mesma unidade em Brasília-DF. Fica claro que, mais uma vez, no transcorrer da história da participação militar em missões de paz, a função de tradutor e/ou intérprete fora deixada de lado. Durante a fase de treinamento, os militares receberam instruções sobre as atribuições básicas que teriam no Timor-Leste, mas nada foi falado a respeito do domínio do idioma; até porque, sabemos que para ser tradutor ou intérprete teremos que extrapolar a noção de domínio do idioma, chegando a atingir detalhes que permeiam uma cultura que não é a nossa. Tivermos, então mais uma edição do “ei, você que fala inglês, a partir de agora será meu intérprete!”
Será que estávamos fadados a perecer diante do processo decisório? Isto porque a falta de habilidade em se comunicar interfere diretamente na participação em momentos de tomada de decisão. Felizmente, veremos que, a partir de 2004, na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH) daremos um salto de qualidade enorme; contudo, ainda precisaríamos de muita orientação, formação e treinamento para empregar aqueles que nos ajudariam em nossa próxima missão a desenvolver um trabalho que se tornaria um modelo consolidado de eficiência e capacidade operativa no terreno. Contudo, essa é a outra parte da história, a ser contada em breve. Aguardem!
LEITURA COMPLEMENTAR
AGUILAR, Sérgio Luiz Cruz (org.). Brasil em missões de paz. São Paulo: Usina do Livro, 2005.
FONTOURA, Paulo Roberto C. T. Brasil: 60 anos de operações de paz. 1ª ed. Rio de Janeiro: Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, 2009.
GUILLET, Jaime. Interpreters and translators: stories of people who’ve done it. 101 Publishing. 2012.
KELLY, Nataly et ZETZSCHE, Jost. Found in translation: how language shapes our lives and transforms the world. 1ª ed. Perigee, 2012.
RÓNAI, Paulo. Escola de Tradutores. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
SILVEIRA, Brenno. A arte de traduzir. São Paulo: Melhoramentos, 2004.
TAYLOR-BOULADON, Valerie. Conference interpreting: principles and practice. 3ª ed. Austrália, 2011.
Agradeço desde já, Israel, por ter aceitado meu convite tão prontamente e por ter dedicado seu tempo e esforço para nos proporcionar um conhecimento tão rico da história da tradução e da interpretação militar brasileira. É um enorme prazer recebê-lo aqui no blog!
Não percam a segunda parte do artigo na próxima semana! Enquanto isso, comentem, elogiem, perguntem! 😉
Sobre o autor
Israel Alves de Souza Júnior é Capitão do Quadro Complementar de Oficiais (QCO) do Exército Brasileiro, tradutor, intérprete e coordenador do Estágio para Tradutores e Intérpretes Militares (ETIMIL) do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB). Em 2012, chefiou a Seção de Intérpretes do 16º Contingente da Companhia de Engenharia de Força de Paz (BRAENGCOY) na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH).