Guest post: Boas práticas de interpretação

rawpixel-711102-unsplash

Crédito: rawpixel, em Unsplash

Educar clientes de interpretação simultânea: mito de Sísifo ou oportunidade para fortalecimento de laços?

O convite da querida colega Caroline Alberoni para que eu escrevesse um post a ser publicado neste blog, um dos meus favoritos sobre tradução e interpretação, fez com que eu fosse confrontada com os seguintes desafios: medo da rejeição, writer’s block e dificuldade de escolher um tema. Caro leitor, se você está lendo este texto agora, isto significa que, desta vez, consegui vencer o medo, o writer’s block e escolher um tema a ser discutido, ainda que eu esteja chovendo no molhado.

A motivação para escolher esse tema é constatar que o trabalho de educar nossos clientes recomeça a cada solicitação de orçamento apresentada, mesmo quando se trata de clientes antigos. Por muito tempo, eu ficava frustrada por precisar educar clientes, tanto os novatos quanto os veteranos em contratação de serviços de interpretação simultânea, sobre nossas boas práticas. Sentia que explicar e defender nossas práticas de mercado se assemelhava muito à tarefa de Sísifo. O mito de Sísifo, pertencente à mitologia grega, resulta da punição póstuma a Sísifo por traição aos deuses. Na terra dos mortos, ele era obrigado a empurrar uma pedra até o lugar mais alto da montanha, de onde ela rolaria de volta ao ponto inicial. No passado, eu costumava sentir que, por mais que façamos o trabalho de explicar e ensinar as boas práticas do setor, ele nunca, de fato, termina. Além de achar que essa era uma experiência penosa e enfadonha.

Nos últimos meses, me esforcei para mudar a minha atitude com relação à maneira de explicar as boas práticas aos clientes. Em vez de reagir com o pensamento “Lá vem o cliente que não entende do mercado de interpretação querendo reinventar a roda”, comecei a pensar “Vou usar meus melhores argumentos e fazer referência à nossa associação profissional ABRATES (Associação Brasileira de Tradutores) e ao SINTRA (Sindicato Nacional dos Tradutores) para defender as boas práticas do mercado e ter uma negociação favorável a ambas as partes com garantia de boas condições de trabalho para a equipe de intérpretes”. Essa mudança de atitude fez com que eu passasse a ver o momento de educar os clientes como uma oportunidade para fortalecer meus laços com os contratantes em potencial. Tomei as seguintes atitudes nas situações detalhadas abaixo:

1. Argumento do cliente: não preciso de um profissional, só de uma pessoa que seja fluente em português e inglês

Atitude passada orientada pela perspectiva da tarefa de Sísifo (resposta por e-mail): “Sou plenamente qualificada para atender às necessidades do seu evento.”

Atitude presente orientada pela perspectiva de fortalecimento de laços (resposta por e-mail e contato telefônico para reforçar a mensagem do e-mail): “O evento tem valor estratégico para o posicionamento da sua empresa dento de seu setor de atuação. Portanto, é importante garantir a qualidade da mensagem a ser passada ao público que precisa da interpretação simultânea. Intérpretes profissionais são fundamentais para mediar a comunicação entre pessoas que não são fluentes nos mesmos idiomas. Conte com meus serviços de intérprete de conferências profissional para atender às necessidades de comunicação do evento.”

Resultado: orçamento aprovado e evento agendado.

2. Argumento do cliente: Não preciso de um profissional… ser fluente nas duas línguas é o suficiente, pois a reunião para divulgar o produto será superinformal

Atitude passada orientada pela perspectiva da tarefa de Sísifo (resposta por e-mail): “Ser fluente em duas línguas não qualifica uma pessoa a trabalhar bem como intérprete.”

Atitude presente orientada pela perspectiva de fortalecimento de laços (resposta por e-mail e contato telefônico para reforçar a mensagem do e-mail): “O momento de apresentação de um produto para clientes em potencial é único e merece planejamento esmerado em todos os detalhes, desde a montagem da lista de convidados até a escolha do buffet. Logo, um evento tão bem preparado será mais eficaz com o trabalho de intérpretes de conferência profissionais para servir como pontes de comunicação entre pessoas que não falam a mesma língua. Minha empresa está apta a oferecer os serviços de interpretação simultânea necessários ao sucesso do seu evento.”

Resultado: negociação interrompida.

3. Argumento do cliente: a interpretação dura apenas 4 horas, um intérprete sozinho dá conta

Atitude passada orientada pela perspectiva da tarefa de Sísifo (resposta por e-mail): “É contra a praxe dos intérpretes de conferência, segundo recomendação do Sindicato Nacional dos Tradutores (SINTRA), trabalhar sozinho por períodos superiores a 1 hora em conferências e 2 horas em acompanhamentos externos.”

Atitude presente orientada pela perspectiva de fortalecimento de laços (resposta por e-mail e contato telefônico para reforçar a mensagem do e-mail): “De acordo com a recomendação do Sindicato Nacional dos Tradutores (SINTRA), intérpretes devem trabalhar sozinhos por um tempo limite de 1 hora em conferências e 2 horas em acompanhamentos externos. Essa recomendação é resultado de estudos que comprovam queda de desempenho dos intérpretes e perda da qualidade da mensagem após os períodos citados acima. Dessa forma, para garantir a qualidade da comunicação no evento, é necessário que dois intérpretes trabalhem em revezamento.”

Resultado: orçamento aprovado, evento agendado e fidelização do cliente que contratou os serviços tanto em 2017 quanto em 2018.

4. Argumento do cliente: não há diferença de tarifa para contratação de 2 ou 6 horas de trabalho?

Atitude passada orientada pela perspectiva da tarefa de Sísifo (resposta por e-mail): “Em consonância com a recomendação do Sindicato Nacional dos Tradutores (SINTRA), a tarifa de interpretação simultânea cobre até 6 horas de trabalho e é indivisível.”

Atitude presente orientada pela perspectiva de fortalecimento de laços (resposta por e-mail e contato telefônico para reforçar a mensagem do e-mail): “Além da recomendação do Sindicato Nacional de Tradutores (SINTRA) para que a diária de interpretação simultânea contemple até 6 horas indivisíveis de trabalho, é importante lembrar que quando um cliente solicita uma reserva de agenda para mim, deixo de atender outros clientes em potencial para atender o cliente que fez a reserva. Simplesmente não ’encaixo’ dois ou mais clientes ao longo de um dia de trabalho. Portanto, a diária fica inalterada se o período de trabalho efetivo for inferior a uma jornada de 6 horas indivisíveis.”

Resultado: orçamento aprovado, evento agendado e fidelização do cliente que contratou os serviços tanto em 2017 quanto em 2018.

5. Argumento do cliente: seu orçamento está muito caro, poderia recomendar uma pessoa que cobre menos que você? Não precisa ser profissional… só ser fluente em português e inglês

Atitude passada orientada pela perspectiva da tarefa de Sísifo (resposta por e-mail): “O orçamento apresentado se coaduna com a recomendação do Sindicato Nacional dos Tradutores (SINTRA) e prevê a devida emissão de nota fiscal bem como o recolhimento de todos os encargos devidos.”

Atitude presente orientada pela perspectiva de fortalecimento de laços (resposta por e-mail e contato telefônico para reforçar a mensagem do e-mail): “Obrigada pelo posicionamento com relação ao orçamento apresentado. Neste link, você encontra o diretório de associados da Associação Brasileira de Tradutores (ABRATES): https://abrates.com.br/buscar-tradutores/. Esse diretório é uma boa ferramenta para que você possa entrar em contato com outros intérpretes de conferência profissionais. Caso opte pela contratação da minha empresa para prestação dos serviços, o orçamento apresentado anteriormente permanece válido pelos próximos 30 dias.”

Resultado: negociação interrompida.

 A despeito de ouvir questionamentos muito similares de clientes diferentes e de ter o sentimento de repetir o mesmo trabalho de educar os clientes a cada solicitação de orçamento, repetindo a metáfora do mito de Sísifo, hoje vejo com clareza que, quando nossos clientes questionam as práticas do nosso setor de atuação, temos a oportunidade de melhorar a qualidade da nossa comunicação com aquele cliente e, principalmente, fortalecer os laços profissionais com aquele contratante. Todos os argumentos de clientes citados acima foram úteis para que eu mudasse minha atitude e conseguisse manter conversas telefônicas e trocas de e-mail úteis para o cliente no sentido de oferecer melhor entendimento sobre o trabalho e as práticas dos intérpretes de conferência profissionais.

Sobre a autora
2018 06 RoBelinky ABRATES-9Rane Souza é intérprete, tradutora e professora de inglês e português para estrangeiros. No âmbito do magistério, ministra aulas particulares prioritariamente para adultos. No mercado de tradução escrita, atua principalmente nos segmentos editorial, tendo vertido ao inglês as obras Abrolhos Terra e Mar, de Rafael Melo (Editora Bambalaio, 2017) e Ver, de Antônio Bokel (Editora Réptil, 2017); e jurídico, com foco na tradução e versão de contratos. Como intérprete de conferências, trabalha nos mercados corporativos privados e do terceiro setor.

12 thoughts on “Guest post: Boas práticas de interpretação

  1. Excelente texto não só para iniciantes, mas para os veteranos também. Precisamos desse olhar renovado para transformarmos uma tarefa repetitiva e enfadonha em oportunidade para conquistarmos e fidelizarmos um cliente. Parabéns, Rane! Abraços

    Liked by 1 person

      • Carol, eu demorei tanto a perceber que minha comunicação com os clientes, por vezes, era seca e impaciente. Não tenho ideia de quantas portas fechadas resultaram dessa atitude passada. Desde que decidi me empenhar para me comunicar melhor com todos, a vida profissional melhorou muito! Que bom saber que o texto foi bom para propiciar esta reflexão.

        Like

    • Ulisses, muito obrigada pelas palavras de incentivo! Precisamos refletir sobre nossas práticas profissionais de ponta a ponta: manter comunicação clara e eficaz com os clientes é tão importante quanto ter um desempenho impecável durante a interpretação.

      Liked by 1 person

  2. Exatamente, Rane! Temos que nos apresentar como solução, dar respaldo a nossas posições sem antagonizar o cliente. Educar o cliente é parte de nossa profissão. Não tem como deixar de fazê-lo – seja qual for a atitude tomada pelo profissional. Melhor não fechar portas!

    Liked by 1 person

      • É parte do que falta (faltava???) na educação universitária dos tradutores. As entidades não pararam para pensar no mercado que nos esperava, imagino eu, e nunca nos prepararam para o mundo dos negócios. É como se na cabeça dos educadores, tradução não fosse profissão. Não sei como está agora, mas há mais de 20 anos tenho discutido sobre a necessidade de uma base comercial para nossos profissionais. O planejamento de como entrar no mercado – primeiros passos mesmo: o que é necessário do ponto de vista de equipamento, livros, aptidões comerciais; comunicação com os clientes (autopromoção, métodos, enfoque, etc.); como trabalhar com colegas, a necessidade de participar de associações profissionais e o engajamento com clientes mesmo fora do “ambiente de trabalho”…

        Ah, mas é tanta coisa que haviam deixado de fora. E para aqueles que, como eu, entraram na profissão “por acaso”, isso faz uma falta enorme. Precisamos de mais textos como este seu. E obrigada, Carol, por nos dar este espaço.

        Liked by 1 person

      • Admito que ainda me sinto bem crua com relação à sobrevivência no mundo dos negócios. Uma das minhas metas para o ano que vem é fazer cursos para me ajudar a gerir melhor minha carreira. No congresso da Abrates deste ano, a palestra da Aline Tomasuolo sobre aplicação do método Starbucks à microempresas de tradução me abriu os olhos para perceber que ainda tenho uma bela de uma jornada pela frente para conseguir equalizar tudo. Muito obrigada pelas palavras de acolhimento e incentivo, Gio!

        Liked by 1 person

      • Esse assunto renderia uma publicação, Gio!

        Embora eu concorde com você, entendo que também seja muito difícil ter esse tipo de conteúdo na universidade. Por exemplo, na minha turma, eles introduziram a matéria de CAT tools. Só que os professores que dão aula em universidades são, na grande maioria, pesquisadores, não profissionais ativos no mercado. Ou seja, eles não sabem como realmente funciona o mercado. São ótimos para ensinar a teoria, mas não a prática. O resultado dessa minha matéria? Nenhum. Fiquei mais perdida que cego em tiroteio, porque a professora não tinha ideia do que estava fazendo. Aprendi muito mais na prática, depois, sozinha.

        A solução que encontro para essa “falha” no ensino universitário é eles darem mais abertura para que profissionais ativos no mercado, como nós, possamos dar palestras ou oficinas dentro das universidades. No entanto, infelizmente, as universidades com cursos de tradução/interpretação que organizam eventos nos quais isso poderia ser aplicado quase sempre acabam convidando mais pesquisadores para palestrarem. Ou seja, os alunos sempre ouvem e aprendem mais do mesmo.

        Liked by 1 person

Leave a Reply